Pequeno conto de Natal
(Acerca de
reciclagem)
A neve tingia de branco a pequena aldeia de Serrazes de
Biqueirão. Era noite de Natal. Ouviam-se ao longe os sinos da igreja e as angélicas
vozes das criancinhas a entoar cânticos Natalícios.
Naquela maravilhosa noite, o céu estava invulgarmente
estrelado, coberto com milhares de pequeninos pontos brancos que a todos fizeram
lembrar os anjinhos do presépio.
Toda a aldeia vivia um momento de profunda magia. Aquela era
uma noite para pôr de parte todos os aborrecimentos e problemas do ano que
findava. Era tempo de partilha, tempo de felicidade. Noite de paz, noite de
amor.
Em certo momento, começaram a avistar o que lhes pareceu ser
estrelas cadentes, muitas estrelinhas cadentes que juntas insistiam em cortar o
maravilhoso manto escuro da noite.
Que bonito, disseram os
habitantes cheios de emoção. É por certo o espírito Natalício que nos resolveu
abençoar nesta noite de harmonia. Que lindo é o Natal.
E continuaram, felizes, a cantar defronte a igreja.
Alguém reparou entretanto que as estrelas se aproximavam
mais, e mais, e cada vez mais.
Quando se tentou dar o alerta, era tarde. Muito tarde. Várias
bolas flamejantes de esterco putrefacto tinham já aterrado bem no centro da
aldeia cobrindo tudo e todos com uma pasta castanha cuja correcta composição me
vou abster de pormenorizar.
Uma reacção química num aterro não muito distante originou
uma explosão e consequente projecção de dejectos incendiários e nauseabundos. Por
certo alguém terá deitado no lixo um produto perigosamente inflamável.
O pânico foi geral. Ninguém teve tempo para perceber o que
se passara. O octogenário da aldeia tombou em imediata arritmia cardíaca. Levado
pelo pânico, o cãozinho de estimação do vigário mordeu inadvertidamente a jugular
da velhinha que vendia docinhos de Natal. Foi um ápice enquanto tombou,
esvaindo-se numa mistura de sangue e pasta castanha, agarrada ao pescoço em
quase inaudível pranto.
Em auxílio, alguém enterra uma bengala na cabeça do animal,
que urra de dor e com um pulo vai morrer ao colo de uma infeliz paraplégica que
ali estava sem conseguir fugir. Em descoordenado movimento, destrava a sua
cadeira de rodas que embala sem controle pela ribanceira Ninguém a conseguiu
salvar do gélido e mortal rio onde se projectou.
O Vigário, que perdera os óculos na confusão, tropeçou e
caiu dentro da fogueira. Ainda se conseguiu erguer, totalmente em chamas, e correndo
sem rumo embateu na enorme árvore de Natal que de imediato se incendiou e
propagou chamas a todas as barraquinhas da quermesse que a rodeavam.
Quase todos os comerciantes fugiram a tempo, triste excepção
para os que vendiam lamparinas, das quais o liquido se inflamou carbonizando-os
integralmente.
Enlouquecidos, alguém gritou que a culpa seria dos Músicos,
pois o espírito da Natal não houvera gostado das suas interpretações pelo que
de pronto agarraram o Regente e o empalaram no chifre de uma rena metálica que
por lá ornamentava.
Foi sensivelmente por essa altura que o óleo quente da
barraca dos fritos se entornou, esturricando com impiedosa efervescência todos
os que se refugiavam sob o seu balcão.
A enorme árvore de Natal resolve tombar no justo momento em
que meia dúzia de freiras acorriam do convento alarmadas pela confusão. E, mesmo
em cima. Parecia propositado. Nenhuma se salvou.
As chamas passaram céleres às casas da aldeia, na sua
maioria em madeira, que em poucos minutos reverteram cinza. Não houve sequer
tempo para salvar o lar de idosos que entre agonizantes gritos se volatilizou.
Um novo carregamento de projécteis incendiários tingiu novamente
de fogo e castanho o pouco que sobrava de Serrazes de Biqueirão. Uma enorme
explosão no centro da aldeia mutilou irreversivelmente a totalidade dos
presentes dilacerando-lhes rostos e membros. Os estilhaços libertados ainda conseguiram
cegar grande parte daqueles que tentavam desordenadamente fugir.
Nada se podia fazer. O fogo alastrou e a aldeia desapareceu
em fumo. Absolutamente ninguém escapou. Foi o literal fim de Serrazes de
Biqueirão.
Assim sendo, é dever de todos nós separarmos bem o lixinho
que pomos na reciclagem, não é?
Um bom Natal, cheio de docinhos, luzinhas e muito amor no
coração!
P.s- Não coloquem este texto no vidrão… sabe-se lá!...