segunda-feira, janeiro 20, 2014

Pequeno conto de Natal


Pequeno conto de Natal
(Acerca de reciclagem)


A neve tingia de branco a pequena aldeia de Serrazes de Biqueirão. Era noite de Natal. Ouviam-se ao longe os sinos da igreja e as angélicas vozes das criancinhas a entoar cânticos Natalícios.

Naquela maravilhosa noite, o céu estava invulgarmente estrelado, coberto com milhares de pequeninos pontos brancos que a todos fizeram lembrar os anjinhos do presépio.

Toda a aldeia vivia um momento de profunda magia. Aquela era uma noite para pôr de parte todos os aborrecimentos e problemas do ano que findava. Era tempo de partilha, tempo de felicidade. Noite de paz, noite de amor.

Em certo momento, começaram a avistar o que lhes pareceu ser estrelas cadentes, muitas estrelinhas cadentes que juntas insistiam em cortar o maravilhoso manto escuro da noite.
 Que bonito, disseram os habitantes cheios de emoção. É por certo o espírito Natalício que nos resolveu abençoar nesta noite de harmonia. Que lindo é o Natal.
E continuaram, felizes, a cantar defronte a igreja.

Alguém reparou entretanto que as estrelas se aproximavam mais, e mais, e cada vez mais.
Quando se tentou dar o alerta, era tarde. Muito tarde. Várias bolas flamejantes de esterco putrefacto tinham já aterrado bem no centro da aldeia cobrindo tudo e todos com uma pasta castanha cuja correcta composição me vou abster de pormenorizar.

Uma reacção química num aterro não muito distante originou uma explosão e consequente projecção de dejectos incendiários e nauseabundos. Por certo alguém terá deitado no lixo um produto perigosamente inflamável.

O pânico foi geral. Ninguém teve tempo para perceber o que se passara. O octogenário da aldeia tombou em imediata arritmia cardíaca. Levado pelo pânico, o cãozinho de estimação do vigário mordeu inadvertidamente a jugular da velhinha que vendia docinhos de Natal. Foi um ápice enquanto tombou, esvaindo-se numa mistura de sangue e pasta castanha, agarrada ao pescoço em quase inaudível pranto.

Em auxílio, alguém enterra uma bengala na cabeça do animal, que urra de dor e com um pulo vai morrer ao colo de uma infeliz paraplégica que ali estava sem conseguir fugir. Em descoordenado movimento, destrava a sua cadeira de rodas que embala sem controle pela ribanceira Ninguém a conseguiu salvar do gélido e mortal rio onde se projectou.

O Vigário, que perdera os óculos na confusão, tropeçou e caiu dentro da fogueira. Ainda se conseguiu erguer, totalmente em chamas, e correndo sem rumo embateu na enorme árvore de Natal que de imediato se incendiou e propagou chamas a todas as barraquinhas da quermesse que a rodeavam.

Quase todos os comerciantes fugiram a tempo, triste excepção para os que vendiam lamparinas, das quais o liquido se inflamou carbonizando-os integralmente.

Enlouquecidos, alguém gritou que a culpa seria dos Músicos, pois o espírito da Natal não houvera gostado das suas interpretações pelo que de pronto agarraram o Regente e o empalaram no chifre de uma rena metálica que por lá ornamentava.

Foi sensivelmente por essa altura que o óleo quente da barraca dos fritos se entornou, esturricando com impiedosa efervescência todos os que se refugiavam sob o seu balcão.

A enorme árvore de Natal resolve tombar no justo momento em que meia dúzia de freiras acorriam do convento alarmadas pela confusão. E, mesmo em cima. Parecia propositado. Nenhuma se salvou.

As chamas passaram céleres às casas da aldeia, na sua maioria em madeira, que em poucos minutos reverteram cinza. Não houve sequer tempo para salvar o lar de idosos que entre agonizantes gritos se volatilizou.

Um novo carregamento de projécteis incendiários tingiu novamente de fogo e castanho o pouco que sobrava de Serrazes de Biqueirão. Uma enorme explosão no centro da aldeia mutilou irreversivelmente a totalidade dos presentes dilacerando-lhes rostos e membros. Os estilhaços libertados ainda conseguiram cegar grande parte daqueles que tentavam desordenadamente fugir.

Nada se podia fazer. O fogo alastrou e a aldeia desapareceu em fumo. Absolutamente ninguém escapou. Foi o literal fim de Serrazes de Biqueirão.

Assim sendo, é dever de todos nós separarmos bem o lixinho que pomos na reciclagem, não é?

Um bom Natal, cheio de docinhos, luzinhas e muito amor no coração!


P.s- Não coloquem este texto no vidrão… sabe-se lá!...

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